Há um mal- estar em ser mulher. O que carrega de si, em si e para si, talvez,
nunca lhe pertenceu. Somos cotidianamente atropeladas pelas normas e regras que
regem nossos corpos em nome de uma organização social. O que tem em nós de tão
mortífero? Seria justamente esse mortífero em nós a energia pulsante que gera
movimento? As histéricas de Freud não seriam a representação do sintoma de uma
sociedade do controle dos corpos? O que mudou de lá para cá? Levanto tais
questionamentos me motivando a refletir sobre as mudanças que transformaram a
história e já arrisco em dizer: A palavra. Ao longo de toda a história, a resistência das
mulheres à opressão esteve na luta para quebra da posição de silenciamento da qual
nos designaram, seja ela qual for.
A posição social da mulher no seio da sociedade capitalista, compreendida
enquanto processos hierarquizados de uma estrutura ideológica de poder, que opera
não somente nas relações de gênero, mas, também, classe e raça, introjeta
expressões e simbolismos em nossa estrutura subjetiva a partir de uma condição que
também é objetiva. A realidade nos atravessa cotidianamente, constituindo
dimensões na esfera individual e coletiva, que evoca na teia das relações sociais
necessariamente a intersecção com o Outro. Para Freud:
“Na vida psíquica do ser individual, o Outro é via de regra considerado
enquanto modelo, objeto, auxiliar e adversário, e portanto a psicologia
individual é também, desde o inicio, psicologia social, num sentido ampliado,
mas inteiramente justificado.” (FREUD, 2011,p.14).
Na sociologia, Lukács (2013) propõe uma reflexão a respeito da ontologia do
ser social, onde o desenvolvimento do ser se constitui em sua interação com o meio
mediado pelo trabalho, um ato de transformação da natureza que o transforma em
um ser qualitativamente diferente, enquanto produto de sua autoatividade.
Compreendo, portanto, que se estamos vivos dentro desta estrutura social,
transformamos e somos transformados a todo momento, ou seja, não há como
deslocar o ser de sua condição material objetiva, mas o desafio está posto à medida
que, em análise, nos propomos a decifrar os mecanismos particulares que cada um
desloca a sua própria realidade dentro do aparelho psíquico.
Deste modo, resgato e compartilho, neste ensaio, um acompanhamento que
realizei em uma equipe de saúde mental de um postinho periférico no extremo sul de
São Paulo. O atendimento era em dupla, uma Assistente Social e uma Psicóloga.
Possuímos a função de matriciar2 casos com as equipes de Estratégia Saúde da
Família - ESF da Unidade Básica de Saúde - UBS, oferecer grupos temáticos
terapêuticos e realizar atendimentos individuais e compartilhados. Por ser uma equipe
volante, a cada dia da semana estávamos em uma unidade diferente, com equipes
diferentes, territórios diferentes, grupos diferentes, histórias diferentes. Tornava-se
exaustivo, principalmente, às quintas-feiras, pois era uma das unidades mais
distantes e violentas que atendíamos.
Em uma quinta-feira ensolarada de outono, na rotina de atendimentos
cotidianos, Maria, uma migrante da Bahia de 30 e poucos anos, chegou com sua
demanda clara e objetiva: Seu filho. No prontuário, um encaminhamento escolar
sucinto que dizia: “Criança com problemas de comportamento, agressivo e sem comunicação oral desenvolvida”. Uma folha de papel padronizada que exprimia em
duas linhas toda a subjetividade que a instituição educacional conseguiu enxergar de
uma criança de apenas dois anos. Sentado ao seu lado na sala de espera lotada de
olhos inchados do acordar forçado de um compromisso no posto de saúde, a meio
caras e bocas de dor e sofrimento, sua energia de criança se expressava contagiando
o espaço tirando desde sorrisinhos simpáticos à irritação alheia. Os pezinhos, que
não alcançavam o chão, se alternavam indo e voltando sobre o ar como uma eterna
brincadeira lúdica.
Maria entrou na sala, após ser chamada, visivelmente angustiada. Puxava seu
filho pelo braço que resistia olhando para trás não querendo terminar a brincadeira de
caretas que fazia com um idoso simpático que aguardava ser chamado para uma
consulta com a enfermeira. Forçadamente, o sentou na cadeira de plástico branca do
lado da sua e determinou que ficasse quieto, por várias vezes. Recordo-me da
expressão firme do seu filho que cruzava os braços e pulava para fora da cadeira na
intenção de desafiá-la. Sabíamos que aquela dinâmica não estava dando certo, mas
ficamos observando caladas tentando entender, ou melhor, pensar no que fazer para
prosseguir com o atendimento. Até que decidimos nos separar. A psicóloga
acompanhou a criança até outra sala e eu permaneci com Maria para que ela pudesse
se expressar.
Havia uma dificuldade substancial no colocar em palavra o que estava
acontecendo. Ao invés disso, chorou. Nunca esquecerei dos seus olhos marejados,
do seu cabelo fino opaco grudando em suas lágrimas, as pernas agitadas balançando
freneticamente e seu incômodo com as mãos suadas que limpava na roupa. Desviou
o olhar focado em cada objeto que encontrava como distração, a janela, o ventilador,
a cadeira que o filho estava sentado. Parecia visivelmente desconfortável em uma tentativa de se organizar. Dava-se a impressão que era muito mais fácil explicar seu
“problema” quando ele estava lá. Em sua ausência, era somente Maria. Questionada
sobre o que havia acontecido, não conseguiu dizer, apenas mostrou seu fino braço
com uma protuberância circular próximo ao pulso, parecia um osso saltando. Então,
finalmente, soltou: “Ele tentou me matar”.
Confesso que, a princípio, julguei estar diante de um possível delírio. Como
uma criança seria capaz de quebrar o braço de sua mãe aos dois anos de idade? Que
força ele teria? Durante todo o atendimento, relatou a respeito de um mal que tomou
conta do corpo do seu filho com o objetivo de exterminá-la. Por conta disso, passava
dias sem dormir, persecutória, não se alimentava adequadamente, enfrentava
violentas crises de pânico e não possuía ânimo para as atividades cotidianas. O
atendimento foi finalizado a seu tempo e antes de chamar o próximo paciente, contei
angustiada para a psicóloga, minha parceira de equipe, o que havia colhido na escuta.
Remarcamos o atendimento para semana seguinte, mas ela não retornou.
Compartilhamos nossas preocupações com a equipe de referência e, para meu
espanto, a história por trás do braço quebrado era verdade. A agente comunitária
relatou que a criança tentou se pendurar no braço da mãe enquanto dormia no sofá,
estava dopada de medicações. A explicação se baseou no ângulo que estava o braço
e por estar muito emagrecida. Solicitamos seu retorno e agendamos estrategicamente
no horário da creche para que fosse sozinha para o atendimento. Constatamos a
evidência que a demanda não era, particularmente, da criança, mas sim, da mãe que
precisava de um espaço de acolhimento e escuta. Para a criança, articulamos um
formato de cuidado ampliando o acesso a outros serviços multidisciplinares.
Reservamos dois horários, pois sabíamos que precisávamos mergulhar fundo
nesta história para construirmos uma estratégia de cuidado junto com a paciente.
No dia do seu atendimento, apresentou-se bastante irritada e na defensiva. Disse que
não precisava da psicóloga porque não era doida e seu maior problema era seu filho
que nasceu com o maligno dentro dele. Uma repetição pulsional como mecanismo de
defesa do ego diante da nossa aproximação. Algo estava recalcado e a criança
representou o depositário objetal de ressignificação do verdadeiro “problema”. A
respeito do funcionamento desse mecanismo de defesa que protege o que é seu, mas
projeta no outro como se fosse dele. vale a reflexão:
"Negação (denial em inglês, no sentido de recusa) é um mecanismo de
defesa do ego que opera de forma inconsciente para resolver conflitos
emocionais através da recusa em admitir os aspectos mais desagradáveis
da realidade externa, bem como sentimentos e pensamentos eternos. Essa
recusa em reconhecer a verdade. A negação (denial) é seguida por dois
outros mecanismos de defesa do ego: cisão e projeção.” (KILOMBA, 2019,
p.43).
Demorou um tempo para desenvolver uma relação de confiança, de entender
o espaço que estávamos lhe oferecendo. Levantamos a hipótese de um possível
abuso sexual. Na tentativa da quebra do mecanismo de repetição, exploramos a
relação com o pai da criança, onde verbalizou que ele havia partido e perdeu o contato
no primeiro ano de nascimento do filho. Uma posição distanciada, a princípio, do
sentido de abandono, quase indiferente. Contou que a relação era boa, mas quando
precisava ter relações sexuais encenou como espremia os olhos junto com o maxilar
para suportar a dor da sensação de ser dilacerada. Justificou a partida do pai
associando ao medo de ser assassinado pelo filho. Não havia ressentimento em sua
fala, era uma compreensão voltada ao seu desejo de partir também, mas a castração
do papel social da maternidade não permitia. Afinal, mesmo com medo, ainda possui
obrigações de cuidado com seu filho.
Por meses, após, Maria simplesmente sumiu do atendimento. Chegamos à
conclusão de que ela retornaria quando houvesse desejo por aquele espaço. Tempos
depois, tivemos a notícia de uma internação psiquiátrica e encaminhamento para
acompanhamento em Saúde Mental no território. Foi um esforço de partida, uma
tentativa de suicídio. Sustentamos a tese de que não tínhamos pernas para atender
seu caso, diante de tamanha complexidade e a ausência de recursos para o
acolhimento voltado a suas necessidades. Encaminhamos para o Centro de
Atendimento Psicossocial - CAPS Adulto, mas Maria não aderiu a proposta
justificando que era muito longe para um acompanhamento semanal, e, também,
porque lá ninguém acreditava que ela não era o problema, mas sim seu filho que
continuava arquitetando sua morte. Apesar de lutarmos com a ideia de assumir a
responsabilidade desse atendimento, algo tinha mudado em sua postura, alguma
coisa ansiava em sair. Marcamos seu próximo atendimento.
Era uma quinta-feira fria, de nuvens carregadas e pequenos chuviscos. Maria
compareceu ao atendimento ainda mais magra e pálida. Estava sem seu filho,
conforme orientação da agente comunitária que a avisou sobre o agendamento.
Desta vez, mudamos a abordagem, focando em conhecer a Maria para além do seu
filho. Sem resistência, nos contou sobre a infância simples no interior da Bahia junto
com seu irmão e seus pais. Após a morte de sua mãe, tudo mudou em sua vida.
Primeiro, seu pai foi embora e nunca mais voltou. Um tempo depois, seu irmão decidiu
se mudar para São Paulo em busca de um emprego melhor, mas com a promessa de
que a buscaria quando a situação financeira melhorasse. Seu irmão cumpriu a
promessa e Maria adolescente chegou a São Paulo com uma pequena trouxa de
roupa e muitos sonhos. Acontece, que seu irmão trabalhava em obras distantes, fora
da cidade, e ficava meses longe de casa, portanto, continuou sozinha. Conseguiu um
emprego como cuidadora de um idoso e se matriculou na escola. Repentinamente, Maria interrompe sua história e volta a falar do seu filho fixando repetidamente no comportamento inadequado pontuado pelas professoras.
O retorno à criança era o seu sintoma. Todas as vezes que avançávamos em
sua história, Maria retomava sua atenção aos problemas que acreditava que seu filho
tinha por si só. Na consulta seguinte, Maria estava visivelmente exausta. Trouxe,
novamente, a questão do seu filho e como estava agitado, fato este que explicava
seu cansaço. Fazia uma semana que não tomava as medicações,
consequentemente, não conseguia dormir, comer, muito menos interagir com seu
filho.
Precisávamos explorar as possibilidades de acessar sua rede familiar e
comunitária para auxiliar no cuidado com a criança. Apesar de não haver crítica a
respeito do afeto que conseguia prover, submetia outras formas de cuidado, pois
provia alimentação, higiene, atenção escolar, brinquedos, mas queixava-se de não
conseguir amá-lo. Mencionou que evitava a frustração da criança para não provocar
sua ira. Uma relação de servidão selada pelo aprisionamento materno, onde o dever
assume um lugar na interrelação com o outro que, contraditoriamente, torna-se,
mesmo que não haja compreensão, a expressão motora do afeto. Resgatamos,
então, o seu irmão, mencionado no último atendimento. Com uma expressão de
rancor, nos informou sobre a perda do vínculo. Quando questionamos a motivação,
Maria se calou. O silêncio era ensurdecedor e revelava sua dor. Foi quando o trauma
foi revelado.
Em uma noite, quando voltava da escola para casa, um carro se aproximou, a
capturou e a levou para o meio de uma mata densa no território. Maria foi violentada
de diversas formas, várias vezes, por muitos homens, durante aproximadamente uma
semana. Quando encontrada beirando a morte por duas crianças que brincavam pela
mata, foi encaminhada para o hospital, onde ficou por muito tempo e passou por
diversos procedimentos cirúrgicos de reconstrução das genitais. Ninguém sentiu sua
falta. Seu irmão não foi localizado. E nenhuma investigação foi iniciada. Quando
recebeu alta, voltou para casa e teve que continuar sua vida. Os agressores eram
considerados “homens de bem” do território, policial aposentado, avô, dono da
mercearia, pai de uma adolescente, dentre outros. O fato de serem pessoas
conhecidas, tornavam a realidade ainda mais difícil, pois quem acreditaria em uma
migrante desgarrada sem família ou homem que a defendesse de outros homens?
Seu corpo tornou-se público porque sua existência nada valia.
Um pacto de silêncio foi estabelecido na ausência de proteções e ela enterrou
nas profundezas de sua caixa de pandora o segredo de todos aqueles homens. Um
tempo depois, seu irmão entrou em contato informando que desalugou a casa, pois
tinha se casado e não retornaria mais. Ela nunca contou o que havia acontecido a
seu irmão. Passou a cuidar do idoso em tempo integral em troca de moradia e, pouco
antes dele falecer, a presenteou com a casa. Esse foi o último atendimento. Maria
emendou uma sequência de faltas até não agendarmos mais.
A influência narcísica do seu ego operava com uma força que sustentava a
tranca para manutenção do aprisionamento do conteúdo que guardava em caixa de
pandora em seu instinto de autopreservação. O nascimento do filho advindo do sexo
masculino personificou o mal em sua imagem e semelhança, resgatando do
inconsciente a dor do trauma, da qual achava que estava livre. Mesmo passado muito
tempo do trauma, em seu delírio histérico, a criança tornou-se a chave de libertação
do seu gozo mortífero.
Maria finalmente realizou seu verdadeiro desejo, partir. Tirou sua própria vida
em casa e foi encontrada três dias depois. A criança ficou na casa enquanto sua mãe
estava morta no chão. Foi encontrado por um rapaz que passou na frente da casa e
estranhou o comportamento da criança e decidiu pular o portão.
Por muitos anos, essa história acompanhou minha carreira profissional
ocupando um lugar de culpa. Lamentei por não ter salvado a sua vida. Que pretensão
narcísica a minha. Hoje, saúdo sua memória que se transformou em história na
partilha de nossos inconscientes.
Reflito que o lugar que se opera o desejo de liberdade está em transformar o
sintoma em palavra. Com isso, me proponho a brindar a psicanálise por nos
presentear com o espaço de escuta e livre associação, para que possamos seguir
adiante dos recursos transformadores para o enfrentamento da castração, por nós e
diante do outro.
REFERÊNCIAS
Freud, Sigmund, 1856-1939. Psicologia das massas e análise do eu e outros textos
(1920-1923) / Sigmund Freud; tradução Paulo César de Souza - São Paulo:
Companhia das Letras, 2011.
Kilomba, Grada, 1968 - Memórias da plantação - Episódios de racismo cotidiano/
Grada Kilomba; tradução Jess Oliveira. - 1 ed.- Rio de Janeiro:Cobogó, 2019.
LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social: livro II; tradução Ivo Tonet, Nélio
Schneider, Rinaldo Vielmi Fortes. 1.ed. São Paulo: Boitempo, 2013.
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