Cresci em um ambiente majoritariamente feminino. Cinco irmãs, de dez filhos, que buscavam apoio umas nas outras para sobreviver à realidade enquanto migrante da periferia da zona sul de São Paulo em plena década de 1990. Quando criança, observá-las era meu grande hobby. Diante da escassez da presença masculina, tinha a impressão que os homens que se aproximavam das mulheres da minha família, que as engravidavam e depois sumiam, na verdade, eram devorados e consumidos por elas. Sou capaz de lembrar com nitidez das altas gargalhadas que indicavam o início eufórico das articulações regada a cervejinha gelada que impulsionava as fantasiosas vinganças elaboradas a estilo de vilã de novela mexicana e findava ao som da melancolia de Amado Batista no enlutar da ausência bandida.
Durante a semana, vida normal, sem dor, luto ou raiva, supostamente. Mas era essa a ideia, mulheres “fortes”, uma cuidando da outra. Como uma das primeiras crianças nascidas, desde muito cedo fui inserida na dinâmica de cuidado. A primeira vez que presenciei minha tia trocar as fraldas de sua filha, a presenciei fazendo uma brincadeira com as partes íntimas da bebê, mas, por incrível que pareça, não me causou nenhuma estranheza. Na verdade, senti a beleza na interação genuína de uma mãe com sua filha. As duas se conectavam em uma gostosa risada e minha tia concluia a tarefa com maestria. Só quem já trocou as fraldas de uma criança, conhece a complexidade de tirar, limpar, colocar, tudo isso com o bebê em movimento.
Recordo-me das trocadas das manhãs, a bebê despertava de seu sono com todas as energias recarregadas. A fralda estava cheia e para distrair a criança ela questionava: “Cadê do torrado da mamãe?”. Logo após, tirava a fralda, juntava os dedos como se fossem pegar algo bem pequeno, tocava as partes íntimas da criança, depois cheirava as pontas dos dedos e simulava um espirro, dizendo: “Opa, o torrado”. A criança gargalhava e se contorcia estimulando que sua mãe repetisse de duas a três vezes a brincadeira.
Acompanhando o crescimento da minha família e convivendo com outras crianças que iam nascendo, pude perceber que aquela brincadeira era uma tradição familiar. A maioria das minhas tias reproduziam aquele conhecimento que supus passar de geração a geração. A estranheza só chegou quando percebi que aquela brincadeira era uma espécie de derivação reprodutiva de um comportamento que também já havia presenciado.
Em seus momentos de contemplação da vida, meu avô que tão longe morava, norte de Minas Gerais quase divisa com a Bahia, sentava-se em uma cadeira barulhenta de metal de seu antigo bar na calçada de frente a sua casa, com sua camisa surrada de pescador aposentado, com seus botões lutando contra o esticar provocado por sua barriga, tirava uma latinha pequena do bolso esquerdo que continha um pó marrom escuro,onde levava ao nariz e instantaneamente o fazia espirrar, conhecido como torrado. Anos depois descobri que era rapé, uma substância produzida a partir das folhas de tabaco, casca de árvore e outras ervas. Segundo meu avô, era para proporcionar a limpeza de suas vias aéreas. Mas como aquela dinâmica ritualística semelhante ao prazer oral do velho cigarro se tornou uma brincadeira envolvendo as partes íntimas de um bebê?
Intrigada com tal semelhança, que não poderia conceber como coincidência, questionei uma das tias a respeito da origem daquela brincadeira. Um fato curioso, foi justamente questionar a única tia que não teve filha mulher, marcando sua profunda frustração,principalmente, após retirada de seu útero, matando seu sonho de infância de ter uma linda bebê afro, da qual constantemente lamenta. Inclusive, essa tia foi a primeira pessoa a me orientar a respeito dos perigos do abuso sexual, antes mesmo de entender o que era relação sexual.
Em seu relato, resgatou que havia um profundo desconforto de todas as meninas, ela e suas irmãs, quando eram obrigadas a visitar seus avós, pois todas as vezes que solicitavam a benção, um costume tradicional da família, seu avô pedia o torrado, que consistia em colocar a mão dentro da calcinha das meninas, cheirar e simular um espirro. Com detalhes, ela lembra de sentir nojo dos dedos do seu avô, à época já idoso. Algumas fugiam, outras brigavam, mas como era uma das menores, tinha dificuldades em escapar, pois sua avó sempre a obrigava atender a solicitação como se fosse algo inofensivo. Resgatar essa memória lhe causou grande desconforto e a reconhece como trauma, este que a motiva a não reproduzir a tal brincadeira, pois segundo ela, foi a mais exposta a essa experiência.
Conforme foram crescendo, todas elas saíram muito cedo de casa para trabalhar, migraram para São Paulo com profundo sentimento de desamparo, umas mais que outras, mas com mágoas direcionadas à mãe e à avó, que não se posicionavam quanto ao comportamento do avô. Apesar da história difusa por trás da brincadeira “inocente”, ela continuou sendo reproduzida como uma espécie de atualização que se repete só que em outros formatos, na dinâmica criada pelas próprias mulheres. Apesar da existência de uma angústia que aponta para o real, o imaginário da forma que o ancore.
De alguma forma, essas irmãs criaram uma redoma protetora acerca das dinâmicas de cuidado das crianças como estratégia de oferecer destino a esse afeto, sendo operadas por elas na fantasia de que o risco fora extinguido de alguma forma, ou seja, os homens; onde as mães, tias, avós, primas, comadres, compartilhavam e dominavam suas próprias dinâmicas de proteção e cuidado. Os homens mantiveram-se afastados, por um lado, diante da barreira fantasiosa de que este sempre representará o mal como algo instintivo e, por outro, a conveniência da distância para não atuação paterna por parte deles, dinâmica influenciada pelos atravessamentos da cultura patriarcal.
Todas elas passaram pela mesma experiência, mas cada uma simboliza de uma forma muito particular. Porém, não o suficiente para problematizar e interromper o ciclo de uma brincadeira nada inocente, mas que tornou parte do inconsciente coletivo desta família.
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