As cinco horas de uma manhã fria e escura, meados sofridos da década de 90 ́,
uma mãe enfrentava os perigos de cada esquina junto com sua pequena garotinha na
saída diária dos confins do buraco rumo a colina, jornada exaustiva do Capão Redondo
que as acolhia. Distante era o ponto o de ônibus, portal que dividia o submundo das
grandes vias, único acesso a cidadania. Uma longa caminhada, 20 minutos para pernas
compridas, sensação de dias para as finas canelas pequeninas. Passos rápidos, cada
minuto custaria o salário que quem pagava ainda dormia. Sombra do atraso no cangote,
bobojaco e suas infinitas camadas de blusas por baixo, proteção do frio insuportável que
enfrentavam, mochila pesada que puxava para o atraso, longas ladeiras e intermináveis
degraus. Todos os dias eram iguais.
Até a garotinha experimentar, pela primeira vez, a sensação de estar e não estar.
No meio da subida rotineira do maior escadão do bairro, um som abafado, um tiro para
o alto, talvez. Não há tempo de voltar, cada segundo importa, a decisão é de continuar. No topo, um corpo. Suas viceras quentes a esfriar, pois resistia ao triste fato do fim que um dia nunca esperava chegar. Só mais um jovem preto que não mudou o mundo, mas ficou perdido no inconsciente de uma garotinha e sua mãe, que encontrou ali uma nova forma de experenciar a vida, um amargo perpetuado pelo tempo e um medo que nunca mais as abandonaria. Não há tempo, é preciso continuar, teremos que atravessar. Ao seu
lado, um homem posturado, de olhos negros como a noite, a encarar.
Na manhã ainda escura, com o frio a tocar os pequenos pedaços de pele, doíam ao vibrar... medo. Não havia tempo, nem mais a decisão de voltar, somente o compromisso da sobrevivência, foi negado a alternativa do temer, portanto, a coragem foi a única coisa que as acompanhou: “Sou cega, surda e muda”. – Enfrentou. Aquele corpo as atravessou e ensinou um doloso mecanismo de estar e não estar, ou, ao menos, sucumbir sua existência para não incomodar.
Sem olhar para trás, mais algumas ladeiras, longas caminhadas, passos
apertados, pequenas pernas a lutar. Segundo desafio, primeiro ônibus, guerra de iguais.
Não a corpo que não se funda com o outro, respirarei a sua respiração e trocaremos a
intimidade do ódio, da disputa, do rancor. A pequena rasteja entra as pernas imaginando uma floresta de bambus da qual nunca conhecera pessoalmente. Se entrar era um problema, descer era um desafio de Titans, não havia amizade ou consideração, muito menos registro das agressões, sua pele preta esconde os hematomas da violenta
necessidade de sobrevivência, restando-lhe a dor que lembrará ao final. Na contramaré,
a travessia desse mar de bambus, puxando, espremendo, empurrando e, principalmente,
gritando. Segundo ônibus, menos desafiador que o primeiro. Mais uma caminhada longa,
mas agora, com pássaros cantando, flores coloridas em jardins, árvores majestosas e
sorrisos simpáticos dos trabalhadores prontos a servir.
Primeira fase concluída. Apartamento silenciado, ainda com a roupa da rua, água
no fogo, brioche, requeijão e frutas, mesa posta pronta para recepção de um acordar
tranquilo cheio de positividade, luz e ilusão. Seu alinhado roupão de seda importado e
sua pele branca reluzindo anunciava um acordar de uma gloriosa manhã ensolarada
cheia de criatividade. A vida é bela! Era a esperança de um dia lindo contra o sorriso
forçado, choro engasgado, olhos lacrimejados, mas em silêncio tudo foi guardado. Raiva,
angústia, abandono, decepção. O que fizeras de tão mau para tanta agressão. Uma
desigualdade de difícil digestão, mas a obrigação do cuidado de uma filha onde a
parceria era a solidão, suportar era a única opção. Tão cedo aquela criança aprendera
mais uma valiosa lição, suportar e silenciar-se era estratégias de aceitação. Sua missão
tornou-se ser tão forte quanto sua inspiração, tirar daquela condição. Aprendeu, também, que a vida era dividida em as que podiam viver e as que permitiam sobreviver.
A cor era, para aquela garotinha, a diferenciação. A garotinha tão logo percebeu que o silenciamento que aprendera com sua mãe utilizava em todas as suas relações, ferramenta que lhe dava a sensação de controle, desde que o outro não seja submetido a frustração. Esforçava-se para ser uma boa garota, sem dar trabalho ou preocupação. Até um dia pensar na tristeza e lembrou com nitidez de sua mãe dizendo “Pobre não tem tempo para depressão, pobre precisa trabalhar”. Essas palavras ecoavam em sua alma sempre quando se percebia em angústia. Apesar de pequenina, passou a pensar na vida e aonde ela a levaria. E em uma noite de tiroteio, normalizada para quem ali vivia, pensou no fim, como seria? Uma sensação confusa brotou ali, um misto de apreço pelo fim e medo. A ideia da morte a inundava em angústia, seu coração apertava, a barriga doía e o medo voltava. E se uma bala atravessasse os muros da sua casa?
Aos sete anos de idade, já sabia o que era responsabilidade. Havia aprimorado a
habilidade de transitar pelos universos distintos da ponte para lá e para cá. Continuava
a desbravar a madrugada com sua mãe, mas seu retorno era antecipado. Só cabia o
amor profissional na casa onde ela trabalhava e este era direcionado para substituir o
que faltava para os filhos do privilégio. Para a pequena garotinha, restava–lhe
reconhecimento pela louça lavada e o jantar iniciado. Ser uma boa menina já lhe bastava.
Certa vez, cansada da intensa rotina, voltando da escola um pouco mais tarde do
meio dia, a garotinha adormeceu e foi parar no ponto final. Um lugar ermo, com poucas
casas, terrenos baldios, mas de belo nome: Horizonte Azul. Reconhecida pelo motorista
que sabia da dura rotina, pediu para que ela aguardasse que o ônibus retornaria. Sentou-se no meio fio, com sua mochila pesada, a fome a acompanhava. De repente, um homem se aproximou, perguntou se estava perdida. A garotinha reconhecia a sensação de frio na barriga, mas se silenciou, como costumeira fazia. O homem a levou, primeira parada, um bar onde outro homem o alertou: Aonde a encontrou? Devolva! O Homem o ignorou, tomou-lhe um copo de cachaça e prosseguiu seu caminho segurando a garotinha pelo braço. Chegou a uma casa de portão metálico claro e dessa casa saiu uma mulher com um pano de prato entre um dos ombros e seus seios fartos. Ela gritava violentamente e avançava pronta para agredir. A criança assustada correu o máximo que conseguia desengonçada e sem destino definido.
Não tinha dimensão do perigo que corria, mas seu maior medo era ser descoberta
por sua falha, não prestar atenção, dormir no busão. Testava as mentiras repetidamente
em sua cabeça a caminho de volta para sua casa. Todo o bairro estava a sua procura.
Desmascarada, a garotinha foi acolhida por seus vizinhos que demonstraram genuína
preocupação, mas precisava seguir com sua rotina: comida, louça e lição. Quando
menos se esperava, a mãe desesperada, com a voz embargada gritava, chacoalhava,
batia todo o seu desespero. Ela apanhou e aprendeu outra valiosa lição: Tema a morte,
mas, principalmente, a vida, sobreviva.
A vida tornou-se seu martírio, mas o fim era ainda pior, preferia a constante
paranoia que acreditava driblar, manipular, quando achava que preenchia a falta do
outro. A vida era dura, rígida, a atravessava, moldava. Uma sensação constante de um
olhar abstrato que se escondia no espectro sem corpo, sem forma, introjetado nas
relações, linguagens simbólicas, com perversa intensão concreta de dominação dos
corpos, definição de quem pertencia a cada lugar, a ordem que não via, mas obedecia,
temia. Dinâmica que alimentava o edifício de inversões simbólicas que construía, que a
deixava cada vez mais paranoica com a vida e, ao mesmo tempo seduzida pelo enigma
que produzia. Constantemente se perguntava, o problema era ela ou o insuportável
silêncio que não conseguia mais sustentar? As vezes saia, mas não da forma que
gostaria.
A pequena garotinha cresceu depressa demais, pois não havia possibilidades
para o livre exercício de sua infância. Cuidava dos primos mais novos, da mãe e até de
alguns outros adultos. Às vezes, cuidava dos roxos e das feridas deixadas em sua tia,
diziam que era culpa da bebida. Frequentemente, se pegava questionando, quem decidia quem ficaria com os piores formatos de vida. Anos se passaram e escolheu como
trabalho o cuidado e ouvir as desigualdades que eram tão partes de si. Na atuação
psicossocial, no cuidado de pessoas com sintomas psicóticos para populações de
extrema vulnerabilidade social, lhe foi revelado as facetas de como histórias semelhantes
à dela grudavam nas subjetividades, se entranhavam em suas estruturas mais internas
e não desgrudavam nunca mais. Forjava a alma, quem deveria parecer se não coubesse
a ela ser quem de fato se é? Conheceu às profundezas da loucura e se conectou a sua.
Reconhecia uma beleza no incontrolável, algo que não lembrava se havia experimentado, algo fora do silêncio. No sofrimento expurgado, gerou incomodo em
quem passou a vida apegada ao controle. E na angústia do outro a sua gritava por
socorro. Agora adulta, compreendeu que estava cansada de alimentar a garotinha
raquítica que se silenciou a vida toda por migalhas de afeto, atenção, aceitação. As
águas rasas da vida que a ajudou a sobreviver ansiava por um aprofundamento. Sentia-
se no atolado de situações que nem se quer preenchiam os copos vazios do armário da
existência, daquela pequena garotinha que não cabia mais de tão grande, agora em um
corpo adulto, vislumbrando, talvez, ressignificar o espaço de quem ainda precisava
aparecer.
Era chegado a hora de pedir ajuda, de dizer tudo que foi engolido, supostamente digerido e agora amargava a boca sentindo o indigesto. No mar de possibilidades de cuidado, lhe foi apresentada a psicanálise. Sua jornada em busca de uma profissional mostrou-se tão complexa quanto se permitir a enfrentar a frustração do outro diante do desejo de tomar posição. Passou por algumas profissionais e se incomodou com o fato de ainda reproduzir a posição hierárquica que se estabelecia diante da imagem que se constituía a sua frente, todas mulheres brancas.
A pequena garotinha de pernas finas sempre voltava assumindo o controle se
submetendo a dinâmica de se silenciar frente ao que interpretava uma figura de
autoridade. Quando o fracasso da falta de conexão com espaço apontava o limite de
sustentabilidade, nunca admitia o fim, sem coragem de dizer não, se embolava
financeiramente para não aceitar o fato que nem isso conseguia. E com tamanha dificuldade, mas lidando com a angústia que só crescia, seguia com eterno desgosto de ser boazinha.
As vezes, chegava a sonhar com gritos que não saiam ou fugas que não aconteciam, no final, sempre era capturada pelo mau que nem sequer sabia reconhecer. Depois de anos a procura, algumas profissionais, pequenos avanços, outros êmbolos financeiros, algumas resistências, ela desvendou a charada. Obviamente, o problema estava com a garotinha teimosa que se recusava a se aprofundar no que tanto doía, mas a solução estava posta, precisava de alguém igual a ela: Mulher, negra e periférica.
Sustentando seu desejo, reconheceu seus avanços com todas as profissionais
que passou, mas a idealização de materializar a relação que sempre quis com outra dela, inaugurava um êxtase especial. Porém, em seu primeiro contato sentiu um
estranhamento quando perguntou sobre a profissional e recebeu um corte estabelecendo o lugar de cada uma. Pobre garotinha que volta a sentir dominada pela figura de autoridade, que não era mais branca, mas se assemelhava a sua mãe. Culpando-se por achar um problema incurável, decidiu se entregar. Espanto foi, após um ano, nada do que esperava chegar. Até que decidiu estudar e procurar o que tanto desejava.
Na formação em psicanálise encontrou algo mais valioso que respostas e
certezas, encontrou possibilidades. A construção da singularidade como complexo que
destrói as unificações, o padrão que tanto a provocava tirava-lhe a responsabilidade de
existir. Descobriu que a construção que é o verdadeiro caminho para compreensão.
Apesar de sentir o doloroso fardo da angústia, entendeu que não há uma garotinha sem
a existência do outro, este que um dia não diferenciou de si, partes do mesmo corpo,
transformou-se em objeto, seu eterno, ou até que dure, depositário libidinal, que lhe
provoca a metamorfosear dialeticamente outras formas de ser.
Estimulada por colegas, decidiu sustentar o lugar de se autorizar enquanto
psicanalista. Empenhou-se a se comprometer a bancar o tripé essencial para atender
com reponsabilidade: Análise pessoal, formação e supervisão. Lembrou-se que, por
algum motivo, falava da formação de modo geral com sua analista, mas não havia
mencionado sobre suas decisões e intensões. Sentiu desconforto ao identificar medo por
comunicar algo que era importante, como se tivesse que pedir permissão para sua mãe.
E quando o momento oportuno chegou, sentiu um peso saindo de suas costas, palavra
por palavra. Até anunciar, que estava disposta a arriscar. A pequena garotinha foi
atravessada com o peso da responsabilidade por ter um emprego fixo e uma filha para
sustentar. Erroneamente, a profissional questionou se ela jogaria tudo para alto como
sua mãe, vinculando a ideia de irresponsabilidade ao arriscar sem o recurso da
experiência; o que propiciou, a princípio, a sensação de impotência frente ao seu próprio
desejo.
Uma nuvem cinzenta tomou conta dos seus pensamentos e se questionava, em
que momento disse que sua mãe havia jogado tudo para alto? Apesar da raiva que
sentia, compreendia o que ela fez, sempre foi em nome da sobrevivência. Suportou e
ensinou a suportar. Diante de sua analista, se responsabilizou pela forma que a idealizou,
sabia que a transferência por muitas vezes não acontecia. Sentiu-se culpada por ser um
caso incurável mais uma vez, mas o que doeu, na verdade, foi o eco de não ser ouvida.
Decidiu que não iria mais se calar. A experiência exigida naquele momento reconhecia
com o mergulho na literatura da vida, do gozo cotidiano, das experiências amargamente
vivida, a conexão que fazia enxergar a arte, filosofia, as relações em sociedade, suas
complexidades, o transitar entre os saberes e os espaços. A perenidade de explorar novos caminhos e caminhar por aqueles já percorridos. A psicanálise a provocou a se constituir enquanto outra forma de organização psíquica. E até ali, mesmo angustiada por não se fazer compreendida, realizou o que mais queria, se posicionar. Avançou e nem sabia. Não era o fim da análise e, sim, o começo de uma nova jornada da qual se autorizava a experenciar com certa autonomia e isso já a satisfazia.
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